Artigo publicado em 12 de Fevereiro de 2021 no site da ABRACRIM, em homenagem ao Prof. René Ariel Dotti.
Soube, há pouco, do falecimento do admirado Prof. René Ariel Dotti nesta data (11.02.21). Li uma nota da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACRIM), subscrita pelo seu Presidente Nacional, o advogado criminalista também do Paraná, como o Prof. René, Elias Mattar Assad e demais Presidentes Estaduais. Em seguida, vi outras de entidades nacionais, como a do Instituto dos Advogados do Brasil (IAB) e da Academia Brasileira de Direito Criminal (ABDCRIM).
A sua morte evocou em mim lições e lembranças que iria guardar secretas dentro do meu coração e da minha mente.
Contudo, logo lembrei quando o conheci, aqui na Bahia, na cidade do Salvador, de ter ouvido sua primeira lição: escreva sempre, mesmo que seja para se corrigir adiante. Isso há cerca de 30 anos ou mais, recordando-me apenas que eu era um jovem professor da UFBA, de vinte e poucos anos, mesmo tendo lhe falado da tradição oral da Bahia, terra de grandes oradores, e até do que dizia ironicamente o grande criminalista baiano Raul Chaves (de quem não tive a ventura de ser aluno, pelo seu falecimento precoce), que o “advogado que escreve, ou é burro, ou rico”, Quem advoga, entenderá (Rsrs).
Tive uma grande oportunidade para qualquer advogado, ainda mais sendo jovem, de acompanhar uma causa, na década de 1990, na qual atuavam conjuntamente os, hoje saudosos, renomados advogados, Evaristo de Morais Filho, Márcio Thomas Bastos e René Ariel Dotti.
Lembro-me das reuniões na Bahia, em São Paulo e no Rio de Janeiro, em almoços que viraram jantares. Eu, ali, certo de que estava tendo o privilégio de testemunhar parte da história do direito penal do Brasil, diria a melhor parte, pelos casos que ouvi.
O Professor René, já com seu laptop, de tudo lavrava Ata e redigia as conclusões com uma velocidade e precisão admiráveis, até mesmo para um jovem advogado como eu.
Nossos laços de amizade foram se estreitando e suas vindas à Bahia naquela época eram mais frequentes.
Eu cada vez mais admirado com sua cultura, sua forma de falar e sua impecável oratória nas exposições acadêmicas.
A convite informal do igualmente saudoso jurista baiano Edson O´dwyer, participei de almoço em sua casa, no qual se discutia a reforma do Código Processual Penal.
Lembro-me de ter conversado bastante sobre a reforma do Júri (com ele e com a saudosa Prof. Ada Pellegrini), e do Prof. René ter proposto, o que depois viria a ser lei, que, se o Júri não for realizado após seis meses da pronúncia, por excesso de processos na comarca, será caso de desaforamento. Dizia ele, é preciso ter em vista que também o réu tem direito a um julgamento célere, para fazer cessar as angústias de uma ação penal.
O Prof. René Dotti era um intelectual extremamente sensível, construiu um teatro em sua casa. Aqui na Bahia sempre, ou quase sempre, se fazia acompanhar de sua grande companheira de vida, Dona Rosarita, que adorava os beijus da nossa terra. Nunca esqueci que, em um dos jantares em restaurante de comida típica baiana, como todo criminalista, arvorei-me a declamar umas poesias e o Professor, sempre disciplinado, se perdeu nas horas a reviver belos poemas românticos.
Tivemos também uma comum experiência como Secretários de Estado: eu, de Governo da Bahia, ele, da Cultura do Paraná. Sobre sua passagem no Executivo dizia, parafraseando Dante: “às vezes pensava que estava a um passo do céu e logo um acontecimento me lembrava de que estava a um centímetro do inferno”.
Desde que nos conhecemos, sempre me enviava seus escritos, merecendo destaque seu discurso no Supremo Tribunal Federal, na ocasião da homenagem ao nosso maior penalista do século XX, Nélson Hungria, quando ficou, justificadamente, honrado em ter sido escolhido o orador.
Era, também como eu, admirador do baiano Rui Barbosa, a ponto de ter passado um final de semana em Salvador para juntos pesquisarmos o que ele pretendia ser um livro intitulado “Rui, um Criminalista”.
Dessas pesquisas na biblioteca do maior “ruísta” que conheci, o saudoso Prof. Rubem Nogueira, resultaram apenas dois artigos: um meu, Rui Barbosa, o júri e a responsabilidade penal dos juízes (O crime de hermenêutica), e outro dele, Rui Barbosa e o processo Dreyfus, ambos publicados na revista do IBCCRIM. Percebemos que Rui, embora tenha oferecido um verdadeiro curso de resistência constitucional ao arbítrio de Floriano Peixoto, com os seus famosos Habeas Corpus, não poderia ser definido como um criminalista.
O Prof. René Dotti foi uma das grandes inspirações para mim e muitos jovens advogados em todo o Brasil, sendo que sua atuação e cultura jurídica transcenderam não somente seu Paraná, como o Brasil, que tão bem representou em diversos congressos internacionais.
Com sua morte, há uma incômoda sensação da passagem do tempo, que, como o vento na poeira da estrada, tudo leva, ou quase tudo, porque temos a esperança de que seu legado como um dos maiores advogados criminalistas do Brasil, doutrinador, defensor da Constituição e das liberdades individuais, ficará para sempre na nossa história, como o de um grande artista, mesmo após terem se fechado as cortinas do palco do teatro da vida.
César Faria é advogado criminalista, professor da UFBA, Conselheiro Nacional da ABRACRIM e membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.